Renata Silva

com Cidade maravilhosa

O trabalho intitulado “Cidade Maravilhosa”, criação de Cláudia Millás, conta com elementos cênicos que relaciono com os de uma construção civil. A cena era composta por tijolos de dois tipos, sendo um de concreto de cor cinza, outro de tipo cerâmico de cor vermelha, areia, figurinos no chão, iluminação em lugares pontuais do espaço, músicas, um microfone, papéis no chão, dois corpos humanos, um tambor de ferro furado no fundo com uma luz dentro e um tipo de equipamento que parecia corda de escalada que ficava em um canto da sala. E foi nele que a artista finalizou sua performance.

Observei o espaço do trabalho e todos os elementos para mim faziam perfeito sentido. Logo comecei a observar os objetos, criar relações e a partir disso fazer uma leitura do que eu via. O nome do trabalho “Cidade Maravilhosa”, a ciência de onde a artista trabalhou, estudou e morou, as trilhas sonoras escolhidas para o trabalho e o cenário me levaram imediatamente em minha imaginação para as comunidades do Rio de janeiro – RJ embora eu nunca tenha entrado em nenhuma comunidade de fato.

A maneira que os objetos estavam dispostos em cena e todas as informações que eu disse anteriormente, deixaram uma marca muito forte para mim de que o trabalho talvez estivesse fazendo uma crítica. Em cena, estavam a artista e um artista colaborador, estudante do curso de Dança na mesma Universidade. O artista Alexandre Roiz, o colaborador, estava vestido com roupas sociais enquanto a artista, Cláudia Millás, vestia-se informalmente com uma camiseta folgada e uma calça bem larga. Ele estava com um sapato social, ela estava com um tênis que parecia bem velho. Alexandre dizia algumas palavras no microfone e pela resposta corporal de Cláudia, ficava claro que ele dava ordens a ela.

O que achei interessante foi esta cena da Cidade Maravilhosa, na favela, com uma autoridade bem vestida e nesta relação de poder, dando ordens e a artista se movendo de acordo com os direcionamentos. Olhando para a nossa situação social com relação as favelas, Cidade Maravilhosa referindo-se a um espaço como este soa contraditório. A relação de Cláudia com os tijolos e com a areia em alguns momentos era de miséria, arrastando-se pelo chão com o rosto envolvido na areia e apoiando-se nos tijolos. Cláudia parecia lutar contra algo. Seu corpo movia-se lentamente e seus rastros ficavam pelo chão. Alexandre a olhava de cima para baixo, não só porque ela de fato estava no chão, mas o corpo dele dizia que naquele momento ele era superior. Ele a observava com altivez e quando Cláudia havia rastejado por um bom tempo, Alexandre dava outro direcionamento e então ela mudava a ação.

Em outra ação, vi Cláudia andando sobre os tijolos de olhos fechados, tentando equilibrar-se, tateando os tijolos com os pés em busca da direção certa e onde pisar. As músicas tocavam. Eram músicas populares (funk, rap e samba). Senti agonia em vê-la desta maneira e me incomodava profundamente que Alexandre a observasse com aquele olhar orgulhoso. Em alguns momentos ele se aproximava dela e lhe falava aos ouvidos e eu não sabia do que se tratava, mas ela rastejava, e ele, agachado, cochichava para ela. Só podiam ser ordens.

Depois de algum tempo, percebi com a dramaturgia do trabalho que uma questão me incomodava. A relação com o público. O trabalho tinha um horário certo para ser observado de dentro da sala, de mais perto. Eu ficava completamente desconfortável em assisti-lo de fora da sala. A sensação de estar dentro da sala me envolvia no trabalho de maneira que eu não queira sair de dentro daquele ambiente. A potência do trabalho me capturava e meu desejo era permanecer bem perto. Olhando, sentindo a temperatura e ouvindo o som da respiração da artista. Eu queria sentir o cheiro de areia e ouvir de perto o barulho dos tijolos e dos pés de Cláudia naquela areia úmida que cobria parte do chão.

Em outros momentos, Cláudia trocava de roupa, as músicas ficavam mais altas e a relação que ela criava com as canções era bem interessante. Em alguns momentos ela vestia uma saia, em outros ela ficava de top e transformava sua calça larga em shorts. Neste momento de intensa interação com a música e os elementos, Cláudia fazia movimentos mais agressivos como os de se lançar contra a parede ou escorregar na areia com certa rebeldia. Fazia paradas de mão, corria, transitava entre os níveis alto, médio e baixo em uma movimentação rápida e rígida. Depois de algumas repetições destes movimentos o corpo de Cláudia parecia cansado, seus movimentos eram ainda velozes, mas agora eram mais fluidos e mais flexíveis.

Cláudia interagia com os tijolos de concreto, andando sobre eles por toda a sala de acordo com as ordens de Alexandre jogando os jogos que ele ordenava, e em alguns momentos ela fazia uma pausa e o único movimento que eu podia ver era o de seu diafragma respirando abundantemente. Neste momento, eu me lembrava que também podia e precisava respirar. Fui capturada de tal maneira pelas cenas que até minha respiração ficava esquecida. Permaneci assim durante 4 horas. Com a respiração esquecida, com o corpo tenso, com os olhos quase sem piscar, com as pernas doendo, imóveis e cansadas. A cada entrada e saída da sala eu lamentava a relação de transformação contínua que aquela obra me pedia para com o ambiente. O que eu via naquela sala, me inspirava criando em mim o desejo de correr. De dançar. De achar meu caminho na arte. Foram 4 horas de olhos fixados. Minha experiência nesta obra foi além de espectadora, fotógrafa do evento, e como artista-espectadora-fotógrafa, eu não conseguia e não queria perder um minuto de todas as potências que estavam acontecendo naquela sala.

Foram 4 horas de trabalho intenso para Cláudia, para Alexandre e para mim. Cada um em um lugar da cena. Dentro da sala e fora dela contemplando a Cidade Maravilhosa, vivendo-a de dentro e vivendo-a pela janela.

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