com Variação para seis temas
Variação para Variação para seis temas
Cabelo Cabelo e mais cabelo…cabelo e as unhas continuam a crescer mesmo depois da morte. Perdemos cerca de pelo menos 100 fios de cabelos por dia e ainda assim continuamos exibindo nossas vastas cabeleiras. Se arrancarmos um fio de cabelo branco, nascem outros três fios no mesmo lugar. São muitas as fábulas, superstições e curiosidades em torno do cabelo. O cabelo sempre esteve relacionado a elementos importantes no processo identitário do indivíduo, seja devido a tradições culturais, aprovação social ou questões pessoais. Através da forma como nos penteamos, prendemos, cortamos ou não os nossos cabelos, revelamos quem somos ou o que queremos ser ou mostrar para o mundo. Ironicamente, será o cabelo o fio condutor desta reflexão.
O trabalho Variação para seis temas apresentado no Sala Aberta foi concebido como requisito de avaliação para o concurso de professor do curso de Dança da Universidade Federal da Bahia e é um desdobramento do trabalho e pesquisa pessoal do bailarino criador Ricardo Alvarenga, como foi mencionado por ele mesmo no início do espetáculo.
Ao entramos na sala de espetáculo, encontramos o bailarino vestido de preto e branco, cabelos presos- um coque prolongando a extensão de sua cabeça- um projetor, uma mulher, que a princípio auxilia na organização do espaço e um outro homem que opera o vídeo e o som do espetáculo. Depois de acomodados, a plateia é convidada a participar de uma espécie de jogo dramático e experienciar a etapa da avaliação do concurso que o bailarino viveu: três pessoas da plateia são convidadas para compor a banca de avaliação do trabalho. A presidente da banca, sorteia um dos seis temas para a realização da prova prática e inicia-se a apresentação.
Vemos um vídeo com a projeção do bailarino sentado de costas para o público: essa imagem é sobreposta à imagem real do artista. Tufos de cabelo são retirados pelo bailarino de seu coque armado. Essa ação encadeia-se com o movimento que segue relacionando a projeção, o vestuário, a pele, uma placa de acetato (suponho que seja este o material) e a parede.
Nessa apresentação, o tema sorteado foi “Processos compartilhados em dança”. Ora, já não me recordo exatamente como foi citado naquela ocasião, mas a expressão “processos compartilhados” despertou-me a atenção, considerando que se tratava de um espetáculo solo. Como pode uma obra criada por um artista dialogar com um tema de criação de natureza coletiva?
Vimos, à medida que o espetáculo tornava-se corpo – e quando digo corpo refiro-me não só ao vigor oriundo da matéria, mas também à potência na estruturação de um discurso corpo- que estávamos diante de uma relação íntima: o bailarino, a memória e sua herança cultural, a minha herança, a nossa herança.
Peço licença ao leitor para um breve comentário: o momento em que o bailarino desmancha o penteado arrancando pequenos fragmentos de cabelo, lembrou-me Dumbledore da série de filmes Harry Potter, quando o velho mago usando sua varinha mágica, retira uma lembrança (que parecem fios de cabelos) da têmpora e joga no caldeirão. Sabendo que o cabelo é dos últimos vestígios de movimento do sujeito, já que ele continua crescendo por um tempo após a morte cerebral ou parada cardíaca, e que está diretamente relacionado à imagem e à identidade da pessoa, Dumbledore e Ricardo Alvarenga criam uma metáfora através dessa ação parecida, que ao meu ver, reconhece esse indivíduo paradoxal: único e múltiplo.
Não sou obcecado pela série Harry Potter, não assisti a todos os filmes. Alguns, não todos. Caso o leitor acompanhe a série mencionada e não esteja de acordo com a relação estabelecida acima, sugiro que continue mais um pouco. Tentarei não falar sobre o universo do jovem bruxo.
Outro elemento relevante no trabalho é uso de máscaras. Entendo como máscara qualquer composição física que nos apresenta o estereótipo de um determinado grupo social. A primeira máscara utilizada pelo bailarino é um coque que mantém o cabelo preso, organizado e amplia sua cabeça. Essa máscara reorganiza todo o corpo do bailarino, deixando-o esguio e alinhado e transporta-nos diretamente ao estereótipo do universo acadêmico: a expansão da cabeça – a fonte da ciência; o cabelo preso – conservadorismo das instituições; o movimento controlado- a burocracia. A segunda máscara é criada escondendo o rosto do bailarino com o próprio cabelo dele. Nesse momento, embora o rosto do artista esteja coberto, considero como uma máscara de desmascaramento, quando o cabelo toma outra dimensão na cena, não mais como adorno, mas como elemento de identidade.
Não poderia esquecer-me da projeção. A utilização de projeção não é nenhuma novidade para as artes cênicas. Estamos acompanhando muitos artistas e as diversas possibilidades de trabalho com esse recurso na cena contemporânea. Em Variação para seis temas a projeção é um dispositivo importante para as questões abordadas no espetáculo. Por meio da projeção vemos a multiplicação do bailarino, ele presente, o vídeo projetado em texturas e tamanhos diferentes e as sombras provocadas pela proximidade e/ou afastamento do projetor. A projeção nesse caso, não funciona como componente cenográfico, ela estabelece uma relação importante na composição da dramaturgia da cena.
Após a apresentação, o jogo dramático segue com a leitura/ apreciação da banca de avaliação. Esse é um exercício interessante, o público e o artista têm a oportunidade de compartilhar impressões, leituras e associações a partir da cena.
O corpo, as transformações individuais e coletivas provocadas pelo uso de aparelhos eletrônicos e o ciber-espaço têm revelado- me como um campo de interesse de pesquisa. A relação homem e tecnologia apresenta-se como uma extensão, um acoplamento, um conjunto ciborgue, uma espécie humano-máquina, um híbrido que se faz na extensão máxima do corpo sobre a tecnologia e na extensão máxima da tecnologia sobre o corpo. E é a arte com seu caráter subversivo que alimenta esta discussão. O espetáculo de Ricardo Alvarenga aborda essas questões de forma sutil e potente.
Leandro Alves é graduado em Teatro pela UFU; bacharelando em Dança- UFU; professor; ator no grupo Mito8 desde sua fundação e um ‘destemido caçador de borboletas’ (Juca da Angélica).