Rafael Almeida

com Nós

Para onde “nós” foram? ou A última sopa?

Eu vou a 1976. Balada do lado sem luz, canção de Gilberto Gil, ouço-a na voz que me embala sempre, Bethânia. Mas estamos 40 anos depois da gravação. Estamos em Salvador, Teatro Vila Velha – curiosamente Gil e Bethânia fizeram parte da programação de inauguração deste espaço em 1964, junto a Caetano, Gal, Tom Zé, Alcyvando Luz, Perna Fróes, Djalma Corrêa e Fernando Lona no show Nós, Por Exemplo -, final de uma tarde de primavera (nós não temos as estações do ano bem definidas no Nordeste do Brasil, já é verão aqui), vejo o mar engolir a bola de fogo que arde no céu e ansiosamente aguardo para assistir depois de alguns anos este grupo referência no Teatro Brasileiro (blá, blá, blá, tudo que já se sabe sobre eles…) 34 anos depois de surgirem lá nas Minas Gerais, o Grupo Galpão traz ao público seu mais recente espetáculo nós (uso o nome em letras minúsculas como grafado na capa do programa do espetáculo e por uma opção estética).

Há que se esquecer de tudo que já foi feito. Nós (o público) presenciaremos (desde a entrada no teatro) um novo Galpão(?), uma nova proposta. Se há ecos de Romeu e Julieta (1992), de Till, a saga de um herói torto (2009) ou de Os Gigantes da Montanha (2013) ou, ainda, de tantos outros espetáculos da trajetória do grupo, estes ecos vão ser encontrados nos corpos dos atores. Ali estão inteiros, com suas histórias. E lançam-se a um novo desafio. Anti-teatrais, desteatralizados, contemporâneos, pós-dramáticos. Eles se jogam neste abismo que são os tempos escuros que vivemos. Tempos de corações duros, de almas abaladas (para parafrasear a canção de Gil que o elenco canta acappella em cena), em que se mecanizam muito além dos Tempos Modernos de Chaplin, esta sociedade que está, sim, doente. Onde todas as tragédias são espetacularizadas por uma mídia abjeta.

Para onde nós vamos? Esta é uma pergunta que os atores se fazem em cena. Numa metateatralidade em que se lê um questionamento de um grupo que percorreu um caminho de quase 35 anos de tablado e que (talvez) se acreditava estanque, eles nos mostram que é possível se reinventar, que é possível dialogar com o próprio tempo, fazendo e nos levando a fazer um exercício de reflexão sobre o nosso tempo. “As coisas não estão fáceis”, fala repetida inúmeras vezes por Teuda Bara (figura emblemática do Grupo Galpão e do próprio espetáculo), de fato não são tempos fáceis. Mas quando as coisas foram fáceis para nós artistas? E mesmo não sendo fácil o grupo alcança um bom resultado.

Depois de Beckett e suas peças recheadas de vazio, pós-guerra, depois do existencialismo de Sarte, depois da segunda metade do século XX o ser humano pouco ou quase nada evolui em termos metafísicos. Sabemos mais que nunca que caminhamos para o nada. Somos cada vez mais vazios (nos preenchemos de um ter que pensamos substituir o ser). Vivemos mais distantes dos afetos presos às telas de smartphones, tablets, computadores, televisores de LED, etc, etc, etc… Repetimos ações de forma automáticas, repetimos discursos vazios, que, como se diz no linguajar popular “falam, falam e não dizem nada”. Essas repetições, esse moto-contínuo, esse movimento perpétuo não nos levará a canto nenhum, Beckett já nos mostrou isso. Mas precisamos falar, falar, falar sem parar. O barulho usado para não nos deixarmos ouvir o silêncio/vazio que há em nós. Repetir, repetir, repetir, eterna e indefinidamente. Mesmo que estejamos proferindo discursos sem conteúdo, informações de buscadores de internet, referências escusas, não confiáveis, mudar de assunto rapidamente, atropelar os pensamentos (os próprios e os de outrem).

Já não ecoa mais em meus ouvidos a canção de Gil, ouço agora Lama, a Lama de Paulo Marques e Aylce Chaves, na voz de Núbia Lafayette, esta Lama está lá no espetáculo (na abertura com Teuda cantando, numa cena em que o Galpão faz referência à sua própria história colocando os atores tocando instrumentos em cena), mas está também a lama de Mariana-MG, a tragédia provocada pela Samarco – numa belíssima cena em que, nus, dois atores nos fazem pensar naquelas vidas apagadas por um mar de lama em que citam um trecho de um dos solilóquios de Joana, personagem do texto Gota D’água de Paulo Pontes e Chico Buarque -, e numa metáfora cenográfica esta lama que engoliu uma cidade – como o mar engoliu o sol na minha chegada ao teatro -, é engolida/coberta por um piso. Mas assim somos nós, os humanos, construímos tranquilamente sobre as tragédias dos outros, edificamos sobre aqueles destroços e rapidamente nos esquecemos do acontecido.

O espetáculo do Grupo Galpão é uma metáfora da contemporaneidade. E é gratificante ver o grupo disposto a discutir e a trazer para cena uma dramaturgia surgida de suas próprias entranhas, expondo seu pensamento, arriscando até a ser um pouco panfletário, mas sempre colocando-se através de metáforas muito bem construídas. Há ecos de Sartre, de Beckett, há chiste com Tchekhov, há citações diretas a outros espetáculos, há críticas a outros espetáculos, paródias, há elementos que fazem parte deste grande guarda-chuva que é o teatro pós-dramático. Muito bem sustentado por um elenco que pode se “atrever” a fazer este teatro por já ter percorrido o TEATRÃO, despir-se de todas as convenções do teatro moderno não é fácil e isto o Galpão soube fazer bem.

Eles podem sim fumar, beber, comer, e não estão mortos, como a personagem da canção Lama, o Grupo está vivo. E iniciando (acredito eu) um novo ciclo nesta tão bem percorrida estrada de 34 anos.


Rafael Almeida é ator, diretor, pesquisador de Teatro. Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, Doutorando em Artes Cênicas pelo PPGAC-UFBA.
rapdr@hotmail.com