Renan Marcondes

com Tira meu fôlego

Renan-MarcondesPrender a respiração, implodir: que vitalidade se compra na seção de congelados?

A diretora Elisa Ohtake vem realizando peças que se debruçam sobre o que ela denomina como “vitalidade radical” dos intérpretes, busca corpórea que deveria ir de contramão a um suposto esfriamento da arte em tempos contemporâneos. Nessa busca, dois espetáculos já foram realizados: Tira meu fôlego e Let’s just kiss and say goodbye. Tratarei brevemente do primeiro, apesar de ambos se tratarem basicamente da mesma obra1, com a diferença que uma se reporta à dança e outra ao teatro. Em ambos, são convidados cinco intérpretes muito reconhecidos no cenário paulistano, o que leva a crítica Helena Katz a chamar um dos elencos de “dream team da dança contemporânea” (KATZ, “Lições de como construir o sublime”, 2014) em crítica realizada no Estadão e o crítico da Folha Nelson de Sá nomear os atores do outro elenco como “entre os melhores dos elencos experimentais de São Paulo” (SÁ, “Let’s just kiss celebra o erro e a brincadeira do ator em cena”, 2014). A esses intérpretes, é proposta uma questão central pela diretora, a ser respondida em forma de solos ou monólogos: em Tira meu fôlego a proposta é “dançar apaixonadamente” e em Let’s just kiss… a pergunta é “Como seria sua despedida do teatro?”. A partir disso, ambas as peças se desenvolvem da seguinte forma: iniciam-se com um prólogo no qual o elenco apresenta uma letargia absoluta – comendo pizza deitados em piscinas de bolinhas, ou dormem em um sofá em um clima de pós-balada – para depois apresentarem e realizarem “vitalmente” a proposta da diretora (em Tira meu fôlego os solos são separados, enquanto em Let´s just kiss… os monólogos se entrecruzam). Além disso, ambos os trabalhos possuem em seus títulos nomes de músicas antigas e hoje completamente reificadas dos anos 80 e 60 além de possuírem uma coreografia conjunta composta de gestos aparentemente “tolos” (como levantar a perna para o lado ou dar dois passos para frente).

Nessa aparente recusa do capitalismo – assumida nos programas dos espetáculos – a diretora se coloca como crítica de um atual cenário da dança e do teatro, tentando resgatar uma presença – ou melhor, “vitalidade” – que ela detecta como perdida e ausente na produção contemporânea. Veremos aqui como esse posicionamento, de uma suposta consciência total da forma da arte contemporânea, aliada a um retorno instrumental em relação aos materiais modernos da linguagem (seja o teatro ou a dança), tornam a peça essencialmente pós-moderna (qualidade problemática de se apontar em pleno 2015, como veremos a seguir) e dotada de uma precisa razão cínica, como apontado pela crítica Flávia Couto, em crítica elogiosa da peça Tira meu Fôlego, na qual diz que a arte é um terreno no qual se pode “livremente recorrer ao cinismo, à ironia, ao ridículo” (COUTO, “A paixão de Tira meu fôlego”, 2014). Tentarei mostrar que não, demonstrando como, a partir dessa operação de uma suposta crítica cínica que foi muito vista nos anos 80 e 90, a peça simplesmente reafirma uma lógica comum de produção e consumo de um “certo tipo de” vitalidade através da aglutinação e horizontalização de todas as referências, colocando acima dela apenas os intérpretes e direção que, profundamente conscientes de tudo, apenas criticam. Para tanto, me valerei principalmente de Hal Foster, no capítulo “A arte da razão cínica” de seu livro O retorno do real, além do livro do professor Vladmir Safatle no capítulo “O esgotamento da forma crítica como valor estético”, em seu livro Cinismo e falência da crítica. Vale apontar que, apesar de Hal Foster se debruçar sobre as Artes Visuais e Safatle sobre música (apesar do livro lidar principalmente com teoria social e política), a argumentação dos dois a respeito das escolhas formais e suas implicações ideológicas parecem se encaixar perfeitamente à obra que aqui comentamos, o que reforça a constatação de que, não só um problema da obra, a razão cínica vem sendo – e ainda é – um modo hegemônico de organização de pensamento e produção de obras de arte. Porém, antes de olharmos para a peça, façamos um breve comentário sobre a passagem do modernismo para a contemporaneidade e o movimento pós-moderno que se configurou como recusa do período anterior.

O modernismo tem sido visto como um período de crenças fundamentadoras, principalmente em uma utopia possível de ser alcançada com a obra de arte que, autônoma e livre das amarras da função (ou do ritual, como nomearia Benjamin), pôde constituir em si – ou ao menos tentar – um campo de relações de crítica e questionamento do mundo, através de um programa realizado a partir da “autonomia de seus próprios processos construtivos” (SAFATLE, p. 180). As vanguardas, movimentos incessantes de ruptura, tanto em relação à um status quo quanto em relações internas a si próprias, movimentam-se a fim de transformar o mundo. Esse projeto moderno, porém, não se realiza, e o mundo não só continua igual como aparenta piorar cada vez mais durante o século XX, com as grandes guerras, o fim do projeto socialista e total hegemonia do capitalismo. É nesse contexto, em torno nos anos 80, que as teorias pós-modernas surgem como uma série de “reações específicas a formas canônicas da modernidade” (JAMESON, 1985, p. 17) com uma consciência crítica da própria crítica que se fundou no período. Esse movimento – como podemos ver com Hal Foster – tendeu a revelar tanto as imagens históricas da arte como as produzidas pela cultura de massa como fetiches (FOSTER, 1996, p. 100), o que conduziu a arte a reduzir processos históricos a signos estáticos e convenções, impressos em obras que operavam “cada vez mais como espaços de repetição mimética da realidade social fetichizada” (ibid, p. 192).

A partir desse breve panorama, podemos voltar à obra, que é constituída por uma série de evocações, no caso à história da dança e das imagens que constituem nosso repertório contemporâneo – e estereotipado – da paixão. A citação constante, assim como a indistinção entre alta e baixa arte (“o desgaste da velha distinção entre cultura erudita e cultura popular”, de acordo com Jameson) apresentam-se como fortes características do chamado pós-modernismo e da obra Tira meu fôlego. Como cita a crítica Flavia Couto sobre a peça: “conhecidas formas de marketing da paixão diluídas em cenas ambíguas, exibem padrões de como é estar apaixonado não apenas para afirma-los, mas sim, bagunçá-los em um desnudamento dos significados delimitados pela lógica do consumo” (COUTO, 2014). Agora, precisamos pensar no que implica uma obra se utilizar desses padrões formais para se produzir, uma vez que Tira meu fôlego parte quase totalmente da imitação de formas já reconhecidas (importante ressaltar que os solos de Eduardo Fukushima e Cristian Duarte são exceções nesse ponto, pois não só justapõem, mas transformam os materiais que são apropriados), sejam as formas da cultura de massa (formas de marketing da paixão) ou as formas da produção acadêmica e pesquisadora de dança. Claramente não há nenhum problema na apropriação de um histórico da linguagem, sua revisitação ou mesmo a cópia completa de obras (grupos como The Wooster group, as releituras e apropriações de Jérome Bel, as situações construídas de Tino Sehgal ou – se quisermos um exemplo de um grupo do mesmo contexto de Elisa Ohtake – o grupo paulistano Les Commediens Tropicales, que possuem obras que são reproduções exatas de outras), ou seja, o que está em jogo aqui não é o procedimento escolhido.

O que está em questão aqui – e quase sempre é esse o ponto – é a forma como as apropriações são feitas. Primeiramente a obra faz questão de apresentar de forma quase didática sua proposta, incluindo nela a própria impossibilidade que eles detectam de realiza-la (quase todos os intérpretes iniciam seus solos relatando a dificuldade dos processos de ensaio e a frustração em cumprir a tarefa, com exceção de Raul Rachou), em uma extrema racionalização do processo que tenta ser desconstruída quando os solos se iniciam: boa parte dos solos consiste em quedas, jogadas, exageros que visam demonstrar que “a paixão é profundamente desesperada” (COUTO, 2014). Munidos de elementos como chantilly, mel, purpurina, tinta vermelha, etc. os solos parecem se destinar a uma ação “que demonstra a todo momento, seja pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar distância do seu próprio gestual” (SAFATLE, 2008, p. 197).

Em meio às essas ações desesperadas, boa parte dos intérpretes interrompe sua realização para narrar o que está acontecendo com o corpo ou pedir ajuda aos outros bailarinos para realizar algumas ações, em uma demonstração de um processo consciente de criação de sua dança. Vladmir Safatle, ao falar de uma peça de música de 1997, chamada Concerto conciso, se vale de uma descrição que cabe muito bem aqui, pois essa obra também “flerta com o informe sem abandonar a sustentação de um princípio de organização a respeito do qual ela faz questão de enfatizar sua descrença” (ibid, p. 200). Ou seja, tudo que circunda a realização dos solos faz questão de demonstrar o quanto todo o processo é altamente crítico em relação a uma certa dança contemporânea, que nunca é de fato colocada, a não ser na forma de paródia, procedimento de mímese que também se opera dentro dos solos. Essa paródia, que como coloca Jameson visa “ridicularizar a natureza privada destes maneirismos estilísticos bem como seu exagero e excentricidade”, nunca leva a obra a se colocar diretamente sobre a relação existente entre esses materiais ou sobre as relações possíveis de serem construídas a partir de outras junções deles, pois todos estão sempre protegidos por uma distancia irônica de sua própria tradição. Assumindo a penetração do signo pelo capital durante a segunda metade do modernismo, ele passa a ser tratado como produto, de forma que os signos virem “assuntos” que estão “afiliados e sorrindo de/para nós” sobre uma “prateleira” (KATZ, “Lições de como construir o sublime”, 2014), algo como o “museu imaginário” de Jameson de onde o pós-moderno emite sua mímese, apresentando tanto a arte quanto o produto como signos para troca, que são diferenciados – e consumidos – como tal (FOSTER, 1996, p. 109). Essa estética “convencionalista” lança mão dessa prateleira, evocando-a a fim de zombá-la como falsa ou forçada.

A partir de Foster, podemos nos perguntar o quanto esse procedimento de unificação, aglutinação das referências e distanciamento irônico de sua própria tradição já as recebe como reificadas (o que seria um problema unilateral do capitalismo, conforme criticado pela peça) ou participam conjuntamente do seu esvaziamento. Claramente nosso caminho aqui opta pelo segundo, uma vez que as formas culturais de significação estão relacionadas diretamente com os modelos-sócio econômicos de produção. Não podemos ser ingênuos a achar que essa massificação das referências e o “convencionalismo pós-histórico” não operam um segundo nível de fetichismo sobre o próprio conceito de vitalidade “que oculta a historicidade de suas práticas” e o traz também como um produto com determinada forma pré-concebida.

Dessa forma, a vitalidade que se apresenta diante de nós nada mais é do que uma produção constantemente reforçada como ambivalente, transitando de forma esquizofrênica entre “demandas contraditórias” e suspendendo assim o paradoxo que opera entre eles. Vemos em Foster que

Essa esquizofrenia simulada não era nova. Em 1983 Craig Owens detectou uma postura similar entre os neo-expressionistas, que eram também confrontados com demandas contraditórias de serem vanguarda (“tão inovador e original quanto possível”) e de serem conformistas (“se conformar com normas e convenções estabelecidas”). Nos dois casos essa esquizofrenia simulada servia como defesa mimética contra esses duplos-cegos; parecia fornecer um meio não só de suspende-los quanto de escapar deles. (FOSTER, 1996, p. 123)

Dessa forma, a ideia de vitalidade, que vai sendo produzida como um gesto desesperado e falseado de aglutinação e condensação de modos de representar a paixão, só a coloca como promessa de algo impossível de ser verdadeiramente realizado, e por isso nem é tentado de antemão. Essa estrutura cínica – desesperada a falar que “apesar de tudo, está tudo bem” – imuniza o espetáculo a partir de sua própria proposta, pois como coloca Foster: “o cínico sabe que suas crenças são falsas ou ideológicas, mas ele se atém a elas para sua auto projeção, em uma forma de negociar as demandas contraditórias colocadas sobre ele”. É na suposta consciência de antemão por parte da direção e intérpretes que a proposta é irrealizável (ou que é impossível se encontrar algo de vital em meio ao capitalismo) que a peça se isenta de uma reflexão crítica e posicionada sobre a questão, existindo apenas no paradoxo entre uma proposta prévia escrita num programa entregue no começo da peça e uma tentativa cínica de alcançá-la, que conscientemente se sabota1 por acreditar que há algo ontológico e  perdido na arte, como um certo tipo de “vitalidade” ou “paixão”. De acordo com Safatle em seu curso sobre Hegel, o impulso cínico “pode conviver com uma nostalgia da verdade como expressão imanente que se guarda na arte. O cinismo demonstra assim sua nostalgia da imanência como critério de validação dos julgamentos, uma imanência que só seria possível na arte”.

O resultado disso, como colocado por Hal Foster, é que a “crítica ideológica pode escorrer para o desprezo”, como é possível ver na coreografia do começo do espetáculo, que imita um estilo e uma proposição para se aquecer sem vitalidade, demarcando um contraste estanque e sem nuances. Ainda com Foster, outro problema é que a “desconstrução pode escorrer para a cumplicidade”. Esse segundo ponto, mais perigoso, nos lembra que a obra de arte é produzida a partir de e em relação direta a modos socioeconômicos de produção. É mesmo possível pensar que toda a produção histórica e artística do mundo está em uma “prateleira”? Caso esse seja mesmo o caso, e não haja mais separação entre obra de arte e commoditie, nós continuaremos a pegá-las como um supermercado? Nessa prateleira, que escolhas são feitas (pois algo está implicado em pegar a Ana Mendieta e não o Bas Jan Ader para falar de paixão)? E porque apenas os melhores intérpretes podem pegá-las? Teriam eles também se tornado produto, objetos passíveis de consumo como Andy Warhol, de quem quiseram “comprar a aura”?

Não cabe aqui responder essas questões, apenas deixa-las no ar para serem respondidas por futuras obras que se disponham a superar o cinismo pós-moderno impregnado em algumas produções, que operam com um “cinismo adequado para a estetização dos modos contemporâneos de funcionamento da ideologia. Dessa forma, valores que deveriam produzir obras capazes de criticar materiais e processos de produção reificados acabam por permitir a conservação desses mesmos materiais e processos através de sua ironização, produzindo com isso uma paradoxal distorção performativa” (safalte, p. 187).

Muito obrigado: Vladmir Safatle (Cinismo e falência da crítica), Hal Foster (O retorno do real), Frederic Jameson (Pós modernismo: a lógica cultural do capitalism tardio), Helena Katz, Flávia Couto, Nelson de Sá.

 

1 Não é a toa que a parodia é o modo de se reportar à essa paixão buscada vitalmente, uma vez que: “a forma paródica realiza cinicamente o programa que a forma crítica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua própria negação, já ser, em si mesma, a performance de uma distância correta em relação a sistemas naturalizados de representações. (Safatle, p. 195)


Renan Marcondes é artista plástico, performer e pesquisador.
Mestre em Artes Visuais pela UNICAMP e especialista em história da arte pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
Membro fundador do Pérfida Iguana, polo de produção em dança e performance.