com A partir de uma história verdadeira
A partir de um olhar verdadeiro
O silêncio, as duas baterias ao fundo intocáveis sem produzir som algum. Logo entra um homem a caminhar. Ele para e retira os seus sapatos para mostrar que aquele solo que irá pisar é sagrado.
Seu corpo passa a se movimentar de uma forma em que reverbera no espaço, trazendo outros homens um a um a compor aquele mesmo espaço. Encaixam-se, completam-se, conversam entre si apenas com a linguagem do movimento. Movimentos sincronizados e uníssonos deixam bem claro que eles fazem parte do mesmo habitat, que compartilham da mesma cultura, da mesma fé, da mesma arte.
Os corpos caminham pelo palco numa naturalidade sem estranhamentos. O solo que eles estão pisando é de domínio próprio. O espaço e o corpo já se tornaram um só, não há distinção.
Entre suspensões, apoios e descansos, ainda com o silêncio predominando, eu me perguntei: – Só existe dança se houver música?
On the Drums, os bateristas tomam seus lugares e começam a tocar sutilmente, com grande espaço de tempo entre uma batida e outra. As ondas sonoras produzidas ali reverberam nos corpos que se transformam a cada batida. O ritmo se intensifica e assim também os movimentos.
Eles se juntam em rodas vivas, carregam uns aos outros, trocam energia através dos toques e logo se isolam cada qual em sua maneira natural de se movimentar, de viver.
Que lugar é esse em que estão? Uma aldeia? Uma tribo? O que está acontecendo ali? Um ritual? Uma festa? Uma cerimônia?
Eles se abraçam, dão as mãos, os corpos trocam olhares o tempo todo, e de repente uma voz ecoa e tudo volta a silenciar outra vez. É o comando do mestre da tribo.
Após o silencio a música volta com mais intensidade, marcando território. Daí em diante a tendência é fazer com que esses corpos não parem mais, apesar de um homem estar estendido no chão já há algum tempo. Parece que houve um conflito e que possivelmente terminou em morte.
Os intérpretes balançam seus corpos sutilmente ao ritmo da bateria que os envolve. De repente todos estão marchando. Percebe-se que há uma matriz de movimento a ser seguida. Os braços também vão tomando lugar nesta dança forte, de pés que deixam pegadas bem profundas e que marcam território. Cada vez mais esses movimentos se tornam fortes como num ritual, parece que eles estão entrando em contato com o divino.
Entrelaçados e de mãos dadas, a impressão que tive é de que estavam presos uns nos outros, acorrentados. Essa cena me fez lembrar a escravidão. E nesse grupo sempre tinha algum homem querendo escapar.
Um a um se deitam, e sobram apenas dois corpos que não querem se calar.
Cada qual deixa o espaço carregando um objeto consigo. Um par de sapatos, uma cadeira, a samambaia, um livro. O palco se esvazia. Que objetos eram estes presentes desde o início do espetáculo? Inspiração para cada um deles no processo de montagem que estavam alí de uma certa forma emitindo informações aos corpos que dançavam.
A iluminação fez minha imaginação ir além e pensar que naquele céu havia pássaros sobrevoando aquela terra, avisando sobre a chuva que estava por vir.
Agora a base são os giros, as danças circulares. Existe nesse tipo de dança uma força que os move. Há uma comunhão. Traz consigo uma história, uma identidade de quem é este povo. Já não sei se brigam ou se ajudam, mas várias são as formas de contato físico entre eles. Contatos que caracterizam algo fora do cotidiano de um ser humano normal. Normal aos olhos de uma sociedade desprovida da sensibilidade de entender ou compreender o que acontece ali naquele bando. Ora se encaixam, ora estão em oposição. Um corpo enfraquece, se estende na terra, mas seus companheiros o levantam e os ajudam a se tornarem fortes novamente. Alguns conseguem voltar a caminhar normalmente, outros não têm forças suficientes para o fazer sozinho e são carregados, em suspensão, sem tocar o solo, pois estão bem feridos, quase mortos.
É perceptível em cena a grande sensibilidade dos intérpretes em saber o que o corpo do outro irá propor.
A música faz o ambiente tensionar-se cada vez mais, eles formam um grande círculo no centro do palco, há vozes uníssonas, a luz vai acompanhando o ritmo de uma roda viva que não para.
Fim da música, as luzes se apagam no mesmo instante e o que estava se tornando intenso agora chegou ao fim. O grand finale não deixou a desejar, a não ser o desejo de assistir outra vez.
Nikolas Granado é estudante de Dança da Escola Augusto Boal de Hortolândia.