com Biomashup
o corpo como buraco da fechadura
Se eu pudesse uma interrogação como os corpos podem janelas:
Onde vocês estão?
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Depois da bilhetagem o público cruza um portão de ferro e se depara com um espaço amplo e híbrido. Espécie de galpão avarandado: quando entramos vemos a nossa frente as costas de uma casa longa que tem as janelas cerradas por tijolos acimentados. Nas periferias do espaço, uns pedaços de estruturas férreas e mato. Se olhamos para a direita, lá no fundo o espaço se abre ainda mais num terreno que é um estacionamento, pr’além dos poucos veículos parados um muro que deixa aparecer vestígios da cidade: cabeças de prédios e de árvores. Toda essa estrutura, responde à alguma distância dos olhos e denuncia o alargado vazio que é a construção.
As cadeiras que elaboram o lugar do público estão organizadas ora sozinhas, ora aos pares ou trincas ao longo de toda a extensão coberta do galpão e há grandes espaçamentos entre elas. Em frente à multidão de cadeiras e espaços vazios um grupo de 7 pessoas vestindo camisetas brancas está organizado de pé em uma pequena roda. Entramos. Sentamos. Esperamos. E é curioso como, ainda que a disposição dos assentos sugira que a dança não virá em um formato para palco italiano, boa parte do público procura as cadeiras “da frente”
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quanto
tempo
dura
um
paradigma?
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Um som de gosto grave espalha os bailarinos afastando-os e redimensionando a roda, movimento que faz com que o theremin e o músico sejam descobertos. O theremin é um instrumento eletrônico de vanguarda criado por Léon Theremin… Mas eu não sabia disso enquanto assistia BIOMASHUP. De onde via a dança o instrumento aparecia como um pedestal com membros metálicos, e é com alguma surpresa que me dou conta de que os sons surgem dos movimentos realizados pelo músico sem que ele encoste no instrumento.
Os bailarinos começam gradativamente a tracejar o espaço por entre os gordos sons metálicos que ressoam. Os movimentos têm força concêntrica – a energia gerada na dança é toda catalisada no corpo mesmo; o movimento não se extende, não sobra nada. Toda intensidade produzida pelos movimentos alimenta o próprio movimento, retorna a força para o motor que a produz, não explode. É magnetizante.
DOBRAR – DOBRAR – ESTENDER – ARRASTAR – DOBRAR – ESTENDER – ARRASTAR
Na medida em que a dança se desenvolve, a dimensão de espaço e tempo vai tomando uma textura sem contornos, sem borda. Como se estívessemos em um buraco.
Penso no filme HER . . .
Penso nos silêncios da música “A vida é um passo”1. . .
Lembro dos meninos do “Bô”2. . .
Em BIOMASHUP há um cuidado com o vazio que desafia a percepção e permite a construção de uma experiência entre público e bailarinos que é móvel, flutuante. A dança e o ver a dança obedecem às linhas cinéticas geradas no encontro entre o movimento do som, o movimento dos corpos que dançam e o movimento dos corpos que vêem a dança. Não é uma equação simples. Para acontecer o trabalho exige do público dedicação – assim como exige dos bailarinos, que manipulam mais diretamente as forças em jogo na cena.
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A dança se excita e se alarga geograficamente na medida em que se desdobram as ações iniciais
DOBRAR – ELEVAR – ARRASTAR – PULAR – DOBRAR – GIRAR
Os bailarinos se deslocam pelo chão do galpão cortando-o de fora a fora e, enquanto eles voam objetivamente surfando espaços vazios, o músico permanece de pé até o fim no lugar que está desde o princípio
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O trabalho é uma longa viagem e questiona a materialidade do tempo e do corpo
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Melhor: questiona suas funcionalidades
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A dança em BIOMASHUP atravessa o corpo amenizando os seus contornos humanos
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Um mergulho em um túnel do tempo de ordem não cronológica
A pele que dança aparece como um buraco de fechadura: lugar para ver através
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Assim como não podemos encostar nos buracos, os movimentos dos bailarinos aparecem como se fossem criados sem encostar no corpo, mas olhando através dele
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BIOMASHUP cria um corpo ao elaborar uma experiência que se constrói não somente pelo que se vê, ou pelo movimento que se executa; interessa o que se re-vela através do corpo: o que ao se mostrar em formas, se subtrai em silêncio e aparece sob uma textura não objetiva mas criadora de percepções e afecções concretas.
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Um convite sofisticado a uma outra possibilidade de ver dança.
1 Faixa nº5 do EP Fregata Magnificiens, do cantor carioca Lício.
2 Trabalho de 2014 da Cia R.E.C (RJ), dirigida por Alice Ripoll.
Laura Vainer é massoterapeuta e estudante de Licenciatura em Dança na UFRJ, onde trabalha como bolsista/monitora no Laboratório de Arte Educação e pesquisa a transa dos processos artísticos com as práticas de ensino-aprendizagem. Atua também como estudante-pesquisadora no Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança/UFRJ, com o qual vem construindo uma cartografia afetiva da Zona Portuária do Rio de Janeiro a partir da investigação de modos possíveis da dança existir com as pessoas e os lugares. Como pesquisa pessoal mantém o blog vasculhandoamor.wordpress.com que se move na elaboração de materiais artísticos a partir da interrogação o que é uma transa?